Assim começa A metamorfose, de Franz Kafka, obra escrita em 1912, na qual um narrador neutro (“cara de pau”, segundo o tradutor Modesto Carone) conta a história de um homem que se transformou num inseto e a reação de sua família, que até então era sustentada por ele. A frieza do narrador, que não se espanta, não explica e sequer divaga sobre o absurdo da situação é assombrosa.
Como é possível narrar a transformação de um homem em um inseto sem se surpreender com o fato, sem ao menos tentar descobrir por que Gregor acordou daquele jeito?
Essa postura narrativa, contudo, é uma das principais características da obra, na medida em que afasta a atenção da metamorfose – que é colocada como um fato ordinário – e se atém às conseqüências da transformação. Até o protagonista, que simplesmente acorda inseto, não se espanta com a sua mutação; pelo contrário, sua preocupação é como irá se levantar para ir ao trabalho.
Em nossa conversa sobre a obra, falamos sobre essa indiferença do narrador, que chegou a causar frustração a uma das leitoras. No entanto, é justamente nessa impassibilidade que reside a liberdade interpretativa de A metamorfose.
Como lemos em O retrato de Dorian Gray, “definir é limitar”; não é preciso muito esforço para perceber que o nosso debate não teria sido tão rico se Kafka houvesse elucidado os motivos da transformação. Por não haver uma definição imposta a priori pelo escritor, nós, leitores, temos liberdade para divagar sobre o porquê da transformação de Gregor.
Surgiram, portanto, em nosso debate, três interpretações, todas muito interessantes a meu ver: a metamorfose seria uma doença? Seria uma manifestação do subconsciente da personagem para se livrar do trabalho? Ou haveria uma inversão na narrativa: Gregor adoece e por isso passa a se ver como um inseto, um parasita?
Em nossa reunião, discutimos ainda a reação da família (exploração, repugnância, ingratidão, dificuldade de comunicação, vínculo puramente econômico, dependência etc.) e a reificação do ser humano - que somente seria considerado importante se capaz de produzir (relação de trabalho) -, ligando essas questões a nossas relações interpessoais. Além disso, falamos um pouco sobre a conturbada relação de Kafka com seu pai, que, segundo alguns críticos, influenciou toda a sua obra.
Não há conclusão, mas apenas indagações: será que tratamos certas pessoas como insetos? Já nos sentimos como insetos em alguma situação? Até que ponto somos fungíveis ou descartáveis?
Por fim, nada melhor que citar a opinião do próprio autor sobre literatura:
“Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”
Talvez a metamorfose mais relevante seja a dos leitores...
Nota: 8,75.
Uma ideia para uma versão pós-moderna de A metamorfose:
ecosprosaicos.blogspot.com/search/label/Kafka